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Religião e política: duas situações

Religião e política, dois temas mobilizantes, em tese deveriam trafegar em vias paralelas, sem jamais se cruzar. Em tese. No mundo real, o entrelaçamento é frequente, com forte impacto sobre o debate público.

Na atual campanha, esse quadro atingiu um ponto extremo. Em especial, os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), incentivados pelo próprio e por seus aliados mais próximos, têm atravessado a fronteira, gerando fortes ruídos em todo o país. Dois eventos recentes sintetizam essa realidade.

1 . Damares em seu púlpito

Representante da chamada ala mais radical e ideológica do atual governo, a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, recém-eleita senadora pelo Republicanos do Distrito Federal, denunciou (sem provas, diga-se) que crianças da região Norte do país são traficadas para o exterior e submetidas a mutilações corporais para se submeterem a abusos sexuais.

As colocações da ex-ministra, durante um culto evangélico, inevitavelmente dominaram o debate político. Foi um “passo em falso”, sem dúvida. Ela falou para seu público mais fiel, que aceita qualquer tipo de informação sem o mínimo critério de veracidade, mas afrontou o restante da população. Se queria comover a sociedade com sua história, Damares errou o alvo. Formalmente inquirida pelo Ministério Público Federal, voltou atrás em suas declarações para dizer que, na verdade, ao andar pelas ruas da Ilha do Marajó (PA), ouviu esses relatos dos transeuntes. A emenda saiu pior que o soneto. No limite, ela entrará menor no Senado Federal, além de prejudicar a imagem do presidente Bolsonaro que, em campanha, tem adotado discurso similar.

2 . Aparecida (SP), 12 de outubro

A tradicional celebração do dia de Nossa Senhora de Aparecida no Santuário Nacional, localizado no interior de São Paulo, foi marcada por graves eventos, talvez os mais baixos desde o início da campanha eleitoral. Um grupo de apoiadores do titular do Planalto, alguns com latas de cerveja nas mãos, afrontou os demais presentes com um comportamento que não condizia com o local e a data. O próprio padre que celebrava a missa foi vaiado, e fiéis e integrantes da imprensa chegaram a ser perseguidos e atacados pelos bolsonaristas. Barbárie explícita.

As imagens do ocorrido, que circularam pela TV e pelas redes sociais, chegam a incomodar. Em um país ainda de população majoritariamente católica, a repercussão negativa foi forte. Política e religião, aqui, estiveram em absoluta dissonância.

3 . Considerações finais

O Estado é laico, conforme determina a Constituição Federal. Em outras palavras, ele deve permanecer neutro no campo religioso ao assegurar a liberdade religiosa, buscando a imparcialidade nesses assuntos, não apoiando ou discriminando qualquer religião.

Na prática, o que se vê é o contrário. Mais e mais, os valores da laicidade têm sido colocados em xeque. “Deus” torna-se, assim, uma personagem política, que acaba por justificar atos de toda ordem - no limite, ameaçando a própria democracia. Inúmeros discursos de cunho estritamente religioso foram observados na campanha eleitoral de 2022. O retrocesso nesse terreno é real e a pauta de discussões do Congresso Nacional, para a próxima legislatura, certamente será dominada por temas de cunho conservador e religioso.

André Pereira César
Cientista Político

Colaboração: Alvaro Maimoni – Consultor Jurídico

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