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Os círculos do inferno de Bolsonaro

Escrita no início do século XIV por Dante Alighieri, “A divina comédia” é considerada obra seminal e fundadora da literatura italiana. O Inferno representa a primeira parte do texto (as outras duas são Purgatório e Paraíso), e ele é descrito com nove círculos de sofrimento.

No caso do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ele está dando início a um mergulho nos círculos de seu próprio Inferno. No momento podemos listar seis que, somados, poderão abalar seriamente suas pretensões de reeleição em 2022.

. Derrota de Donald Trump - o início de novembro foi marcado pela derrota do republicano Donald Trump na disputa eleitoral norte-americana. A vitória do democrata Joe Biden reforça as dúvidas quanto à atual condução da política externa brasileira. O alinhamento total às diretrizes de Trump perde sentido.

A partir de agora, o Brasil sentirá dificuldades extras no relacionamento entre os dois países. Aqui falamos especialmente da questão ambiental, com foco na Amazônia, hoje objeto de fortes críticas por parte dos democratas (críticas essas que encontram eco entre os países europeus, diga-se). Nesse cenário, mais do que a retórica, o Brasil precisará mudar a ação, sob risco real de sofrer pesadas sanções econômicas e financeiras do novo governo.

Também questões hoje tidas como centrais no discurso bolsonarista, como as referentes a aborto e minorias, entre outras, precisarão ser reorientadas. Essa possível nova realidade, por sinal, poderá colocar em xeque figuras importantes dentro do chamado “núcleo ideológico” do governo brasileiro, como os ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente). No mínimo, eles terão reduzida a autonomia de ação.

Em suma, salvo um ajuste de rota, a vitória de Biden tem o potencial de isolar ainda mais o Brasil na comunidade internacional.

. Eleições municipais - ainda em novembro, as eleições municipais poderão gerar um novo revés para Bolsonaro. Candidatos por ele apoiados, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, correm o risco de ficar fora do segundo turno da disputa. Esse seria o pior cenário para o presidente.

Em São Paulo, a aposta presidencial em Celso Russomanno (Republicanos) parece ter sido um passo em falso. Na capital paulista, a história se repete - o candidato largou na frente das pesquisas, mas rapidamente perdeu fôlego. Ponto para seus adversários e também para o governador João Dória (PSDB), desafeto do titular do Planalto.

No Rio de Janeiro, o quadro é similar. O atual prefeito, Marcelo Crivella (Republicanos), realiza uma administração caótica e apresenta elevados índices de rejeição. Mesmo assim, Bolsonaro colocou as fichas em seu nome. Mais uma aposta equivocada.

No limite, o presidente tende a ficar sem palanque nas duas principais metrópoles do país, um ponto negativo para o seu projeto eleitoral.

. Orçamento, auxílio emergencial e Renda Cidadã - o ano se encerrará em meio ao debate em torno da Lei Orçamentária Anual de 2021. Até o momento, não há entendimento mínimo em torno de seus termos. Nem mesmo a Comissão Mista de Orçamento foi instalada, por falta de acordo.

Assim, a proposta de criação do programa Renda Cidadã, que substituiria o Bolsa Família, segue o risco de não sair do papel. Na avaliação do governo, ele seria fundamental para reforçar o nome de Bolsonaro junto aos estratos inferiores da sociedade, em especial nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Por ora, tudo está indefinido.

Um dos pilares do aumento da popularidade presidencial, o auxílio emergencial está chegando ao fim. Sua prorrogação ainda é incerta e, caso não tenha continuidade, a avaliação de Bolsonaro junto à população tende a cair significativamente.

. Sucessão no Congresso Nacional - a disputa pelo comando das duas Casas, em especial na Câmara dos Deputados, coloca em lados opostos aliados e adversários do presidente. A definição ocorrerá em fevereiro do próximo ano, mas já mobiliza os parlamentares.

No Senado Federal, Davi Alcolumbre (DEM/AP) segue em busca de soluções para tentar a recondução ao posto. Caso não se chegue a um entendimento, o senador Renan Calheiros (MDB/AL) articula os nomes de Eduardo Braga (MDB/AM), de Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE) e de Eduardo Gomes (MDB/TO), esses dois últimos líderes do governo, como alternativas. Por outro lado, não se descarta a vitória de um postulante com perfil mais independente, o que dificultaria as relações com o Planalto.

Na Câmara, o quadro é mais complexo. O neo-aliado Centrão tenta emplacar o nomeado deputado Arthur Lira (PP/AL), expoente do grupo. Do outro lado, os apoiadores do atual titular, deputado Rodrigo Maia (DEM RJ), defendem um nome não alinhado ao governo. A evolução dos acontecimentos pode esgarçar de vez as relações do presidente com os deputados.

. Família - os problemas da família Bolsonaro assombram o governo desde antes da posse. Hoje, o foco está no senador Flávio Bolsonaro (Republicanos/RJ). O Ministério Público do Rio de Janeiro ofereceu denúncia contra o senador e mais quinze pessoas, no chamado esquema das “rachadinhas”, pela prática dos crimes de peculato, lavagem de dinheiro, apropriação indébita e organização criminosa. A Justiça fecha o cerco contra ele e seu grupo, com grandes chances de respingar no Planalto.

. Justiça - o ministro Luís Felipe Salomão, corregedor-geral eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral, liberou para julgamento uma ação de investigação judicial eleitoral movida pela Coligação de PDT e Avante na eleição de 2018, que pede a cassação da chapa Jair Bolsonaro/Hamilton Mourão sob a acusação de irregularidades na contratação de serviço de disparos de mensagem em massa.

Existem ainda outras duas ações que visam a cassação da chapa. Uma movida pela coligação formada por PT, PCdoB e PROS, que aguarda uma decisão sobre o pedido de compartilhamento de dados do inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre disseminação de fake news, e a outra movida pelo PSOL, que discute a invasão da página no Facebook do movimento de mulheres chamado “#EleNão”. Nesse processo, os ministros do TSE entenderam ser possível reabrir o prazo para coleta de provas. A Justiça mantém o fantasma da cassação e da inegibilidade no horizonte de Bolsonaro.

. Conclusão - “Deixai toda esperança, vós que entrais”. A transposição da frase cunhada na entrada do Inferno para o atual momento do governo Bolsonaro pode soar exagerada, mas é fato que o presidente ingressa em um momento delicado de sua gestão. Os riscos a curto e médio prazos são reais e os potenciais danos políticos não são desprezíveis.

André Pereira César
Cientista Político

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